quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

Uma diarista para o meu bem



A santa do lar
Vamos devagar


                                                              Deixa para lá








Que sociedade a nossa!
O mundo acabou, senhores. As feministas venceram.
Em vez de meter a mão na louça e na massa, as mulheres de hoje terceirizaram. Procuram uma diarista que faça esse desgastante serviço.
Nada de umbigo no fogão e mão na água fria. Agora é barriga sarada e unha feita. Bolsa no ombro rumo ao trabalho - temos outros compromissos.
Portanto o negócio é arrumar uma diarista para o meu bem.
Que não seja muito jovem nem razoavelmente bela; a tentação é uma porta larga, bem fácil de ser atravessada. O homem é quente.
Que seja calada,  sem muita opinião também seria recomendável. Um pouco surda, assim não ouve aquela voz de veludo. Nã nã ni nã não. Aquela voz é música, é melodia, é canção. Não é coisa assim fácil de achar não, para qualquer uma ouvir.
E também nada de barulho, panelas batendo, aspirador ligado. Meu bem gosta de sons suaves.
Que chegue na hora certa porque o patrão sai cedo. Em ponto. Ele não pode se estressar, não o enerve, por favor, sua calma é preciosa para mim. Mas também não o agrade muito, que homem é bicho bobo e se apega. Devem ser meus os maiores agrados.
Que sirva um café fraco, ou forte, ou sirva frio, nunca melhor que o meu. Nunca melhor que o café que saboreamos olho no olho.
Que arrume sua cama sem sentir seu cheiro. Segure a respiração, querida. Esse cheiro é delicioso mesmo.
Que entre no seu quarto com respeito, é território místico.  Proibido olhar para as marcas que ele deixar na cama- hipnotizam. Seu travesseiro, por favor, não toque; é
onde pousa sua cabeça para dormir? Não é verdade.  Seu travesseiro é meu colo. Sou eu que estou ali.
Edredons e lençóis, nem pense. Toalhas, cuecas? não encoste querida. Aí estão guardados tesouros.
E seus livros, seu teclado, seus óculos. Deixe aí, senhora. Limpe por cima. De leve. Sem muita intimidade. Acho um pecado que outras mãos invadam esses tesouros.
Cuidado com essa estatueta, por favor. Trouxe das mil e uma noites do deserto. Aquele negocinho redondo? Veio do outro lado do mundo, protegido no bolso de seu casaco. Ainda guarda suas digitais. Não pode cair de jeito nenhum.
Quanto às refeições. Especial atenção. A comida deve ser levemente temperada e bem salgada. Fresca, que cheire pela casa, que o aroma anuncie uma refeição prazerosa. Aprecia a boa mesa. Mas não capriche muito não. É vaidoso e gosta de manter a elegante figura.
Abra as janelas e deixe o Sol entrar.
Não muito. Tem a pele clara, alva. Sensível
  Isso, feche um pouco a cortina. Sem excesso de luz.
Fique perto, atenta, mas sem se aproximar. É artigo raro. Coisa fina. Um em um milhão . Custei para encontrar.

É.
Acho que não vai dar.
Vou desistir dessa busca por diarista.
Deixa o serviço de casa para lá.





segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

Turbante pode

 Me dá que é meu
 Claro, é seu
 Mas deixa um pouco comigo
 Não é meu, nem seu
 É tudo nosso





                 
 " Vida de negro é difícil / é dificil como o quê / 
eu quero morrer de açoite / se tu negra, me deixar " ( Caymmi)



Relutei. E como relutei.
Não gosto de chover no molhado, nem de bater na mesma tecla, nem de dar murro em ponta de faca. Mas o assunto me incomoda muito. A cada vez que abro o facebook tá lá: apropriação cultural.
Então, lamento, mas alguns poemas emergentes e urgentes de amor aguardarão mais um pouco.  Ficarão latejando e fermentando, crescendo, se definindo e se revelando. Donos de si,  sairão na hora certa pelo teclado antigo, tal qual este vivido coração cibernético. que não erra de hora.

Vamos falar logo deste negócio. APROPRIAÇÃO CULTURAL. Sob o olhar de uma pessoa comum, Não sou sociológa. Não estudei moda nem antropologia. Não sou ativista de nada que não seja PAZ.
Fui em busca de informação. O olhar do leigo existe instrução. Não muita para não se perder em conceitos profundos. Também não pode ser pouca, para não encalhar no raso. As coisas rasas nos afogam com mais facilidade que maremotos turbulentos.
Turbulentos turbantes!!!! Eis que surge um trocadilho oportunista...
Será oportunista de minha parte vir a querer, um dia, por acaso, por moda, por frio ou por calor, posso querer usar um turbante. Serei eu negra o suficiente? A cantora Anitta, foi recriminadíssima por usar dreads africanos. Acusada de estar apropriando-se de um símbolo negro. Perguntei a muitos, sem resposta, se Anitta é por acaso, européia. Há um grande racismo implícito em negar a origem negra da funkeira. É bela. É rica. Faz muito, muito sucesso. E usou dreads. Acusada de oportunismo. De defender bandeira que não é sua. De querer ganhar boa reputação. De fingir que não é racista.

A tal apropriação cultural, mal interpretada por tantos, é bem oportunista também. Definida pela revista Carta Capital como: " Apropriar-se de um símbolo de outra cultura desprezando o contexto de onde ele realmente vem. Essa é a grande crítica que se faz à apropriação cultural. Ela se apodera de outras culturas, sem necessariamente a ajudá-las a ter a visibilidade merecida no mundo."
Carregando nas tintas: um povo tem sua identidade cultural exteriorizada, entre outras coisas, por sua indumentária. O povo é dominado por outro, que proíbe e pune suas manifestações culturais. Os anos passam. As décadas passam. O povo dominador, tirano, agora enxerga nesta manifestação cultural uma possibilidade de de aparentes acordos, e muda o discurso: apoiemos! É bonito! Com muita ironia, falsidade, e vantagens capitalistas nesta mudança de conduta. Ou, no mínimo, sem o devido significado.
Ora, ora, ora.
Teríamos, então, com essa prática , o abuso e o desprezo pelo que é do outro. Estamos falando da essência do racismo que permeia toda escravidão, ou do contrário; da escravidão que enriquece o racista.  Nada mais que isto. Racismo, escravidão, sofrimento, covardia. Mulheres brancas no cartório e amantes negras na cama. Muito chicote e lágrimas sem fim. Muita injustiça e covardia. Mão de obra gratuita ou quase. Elite milionária e branca.
Isto parece não ter acabado na verdade.
O racismo existe no Brasil, no mundo, e dói fundo, dói sozinho, aquela dor aguda e súbita que dá vontade de gritar, mas o grito morre esganando o pescoço. Só entende quem passou.
A boa nova é que o racismo hoje é crime, tipificado em lei.  Registre a queixa e será apurado, e punido.  Crime grave, gravíssimo.
Sentimo-nos bem guardados e  podemos ostentar nossos pertences históricos. Nossas relíquias e medalhas.
Esse desfile orgulhoso ajuda a curar nossa dor. Carregamos as marcas do tronco com a honra dos vencedores.
E se um amigo branco, japonês, hindu, judeu, nórdico, quiser ajudar a carregar o troféu, deixemos, caríssimos. Sem egoísmo cultural. Ele não o faz mal intencionado. Isso de enxergar tanta má intenção é  trauma de cativeiro. Estamos livres.
Ah..." a galega nao sabe o que faz.". Paremos com essa mágoa ancestral. Vamos relaxar um pouco e usufruir da nossa tão  esperada comunhão racial. Não nos diminui em nada dividir esse andor. O santo não é de barro. Pode carregar alto para o povo achar bonito e aplaudir.
Dizer que só o representante pode abusar de sua estética é delimitar fronteiras. Acaba por separar as tribos e etiquetá-las. Classificar. Cuidado.  Em breve teremos a braçadeira nazista. A Estrela de David. A faixa rosa para os gays.
Não.
Não aceito o discurso da apropriação porque traz, intrínsico, o temível discurso da proibição. Do não poder porque nao te pertence. Porque é meu e não é seu.
Porque vou para a senzala e você para a Casa Grande. Porque fui para o campo de concentração enquanto você, branco, ariano, europeu, passeava nos museus.
Carissimos, que nenhum conceito acadêmico nos aparta da unidade maior. Que nenhuma teoria sociológica marque limites para a maior irmandade que há - a única que conheço -  os terráqueos. A filosofia serve para libertar. A liberdade de expressão (e de emoção), esta sim, é a verdadeira conquista eterna.
A deusa loura usar dread? Pode. A deusa negra usar mecha loura ou uma peruca Chanel? Pode.
Podemos misturar o sangue e o gosto num beijo ou numa cópula? Podemos. Casais inter-raciais de monte por aí, a afrontar esta capenga teoria, corpos e mentes coloridos e deliciosamente misturados. Sejamos coerentes. Se o branco nao dá o devido valor ao símbolo,  não dará valor a criatura. Teoria estreita, curta e perigosa.

Carrego quatro ou cinco nações em mim. Reverencio todas. Estou bem viva neste corpo miscigenado, e tenho orgulho de meus antepassados, todos eles, do que sofreram, do que conquistaram, do que perderam. Do muito que me ensinaram.
Usarei turbante angolano e lenço português, farei pasta em casa e tocarei castanholas. Tambores e feijoadas à vontade para todos os amigos.

Sou do mundo. Somos do mundo. "Somos todos um."

Bom turbante para todos.

 A bela Anitta, de dread. Porquê não?


.








quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

O Banco do Marido

Marido é marido em qualquer canto
Namorados são diferentes
ìndio mulato preto branco
Namorados são diferentes
( Parafraseando o genial Arnaldo Antunes)

     

                     

O objeto desta conceitual discussão não é o banco. É o marido. Mas fica a ilustração do banco mesmo, a fim de preservarmos o(s) envolvido (s).




Esta foi comigo mesma, e narrarei na primeira pessoa. Bastante ególatra essa classificação do pronome pessoal "eu". Primeira pessoa. As demais virão depois.

Enfim, egolatria ou solidariedade,  foi comigo, primeiríssima pessoa e segunda ou terceira esposa e milésima namorada de alguém. Por circunstâncias da vida, convivo com pessoas ( segundos e terceiros pronomes ) que não passaram por tantas experiências, e por formação sócio-cultural custam a entender que meus filhos são irmãos por parte de mãe, e tem outros irmãos, por parte de pai, No caso, especificamente, a figura rara e carimbada do meu porteiro. S,Lourival, resiste a este fato. Pernambucano de boa sepa, chegou ao Rio com uma panela e um rádio, e uma vez instalado na Rocinha, mandou vir a noiva. Há 35 anos. Não separou, divorciou, casou, ou teve filhos com outra que não sua mulher, no padre e no juíz.

Eis que pelos olhos de S.Lourival sou "largada do marido, coitada de D.Elizabeth." Há que explicar - eu e meus maridos largamo-nos mutuamente; não sou coitada, nem vítima, nem infeliz; e meu nome de batismo é Bettina. Tudo isso muito difícil de aceitar para o S. Lourival.

A cada relacionamento que inicio vejo o olhar de S.Lourival. Quando desço para sair, arrumada, salto alto, ele só falta se benzer. Posso ler seus pensamentos. "Mulher largada do marido é isto".

E já vinha eu num relacionamento estável. Quase três anos, número alto para nossos atuais amores líquidos que escorrem pelo ralo em muito menos tempo. Quase um marido, não é mesmo?

Muitas vezes ao vir me buscar, o voluntário do amor puxava uma conversa com o bom e velho S.Lourival, que na verdade, nutre um grande carinho por mim. Era o "namorado". Palavra meio suja, pronunciada rápida e baixo ao interfone.  Um sinal de alerta para uma fuga, talvez. 
" Seu namorado está aqui embaixo, d.Elizabeth". Incomodadíssimo.

Meu então namorado compra um banco. Um banco para ser usado quando se toca bateria. Um banco que não se compra para sentar, ler jornal, nada disso. Seu mundo era mesmo peculiar, seus objetos peculiares, e suas compras também. Nosso relacionamento peculiar mancando, rateando.
Pede ao vendedor do banco que o entregue em minha casa, mais fácil, mais perto. 
O vendedor, um amigo querido, entrega em minha residência, como combinado. Me avisa  " -  O banco está com seu porteiro. Avisei que é de seu marido."

Perfeitamente compreensivel dentro de sua ótica.. Pessoas da meia idade tem maridos, mulheres. Namorado é coisa de outra faixa etária.

Chego do trabalho e pergunto ao s.Lourival. " - O  banco?"
Ele diz "- Entreguei ao seu marido. "
Não titubeei. Liguei para confirmar.

Só que não, como está na pauta dos adolescentes. Só que não. Nada. Nada de banco.

Volto à portaria "- Entregou mesmo, s. Lourival?"
" - Entreguei sim, d.Elizabeth. Quando ele veio deixar o menino, levou logo o banco, que não gosto de nada ocupando espaço aqui na portaria"
" - Que menino, S. Lourival?" 
" - O seu menorzinho".

Lascou-´se. S.Lourival entregou o banco para o marido errado. O Ex. O Pai do Caçula.
O banco passeando pelo Rio de Janeiro, pelos entendimentos misóginos desta criatura - marido é quem é pai de filho. Meu Deus. Eu tenho dois filhos, um de cada pai. Teria portanto, dois maridos? Lá vou eu atrás do referido ex.

"- Pessoa, você recebeu um banco?"
"_ Sim, Maior banco maneiro. Obrigadão. Adorei. Show"
Cai a ligação.
Socorro. Por que, Senhor, eu daria um banco a quem quer que fosse??? Banco agora é presente????

Consigo esclarecer o marido pelo não marido, e o banco chega ao seu devido destinatário;
tive que ouvir, calada, do ex: 
"- Quem manda? Cheia de marido, isto é que dá"

Trata-se de uma grande, grande injustiça.
Marido é quem amamos, de corpo, alma e coração.
Marido é quem divide nosso sonho, quem faz parte de nossas orações, quem muda nosso texto, nosso fundo musical, quem muda nosso olhar para esse mundão de meu Deus.
Marido é um privilegiado, amado além dos defeitos, e desejado além do corpo.
Bem vindo, aguardado, preservado.
Marido é o sortudo, o escolhido, o abençoado.
O que abençoa a vida com sua presença.

Esclarecido este conceito, vejo que o banco permaneceria sem destino, não fosse a força do negócio fechado.  A etiqueta "marido" já tinha descolado de um, há tempos, e também não segurava no outro.
Valha-me a nordestinagem preciosa de S.Lourival.
Nem eu sabia quem era meu marido, como ele ia saber....