segunda-feira, 23 de março de 2015

Achilles e Eu

Calcanhar abençoado

Pisando leve
Que a vida é curta
E o tempo é breve


Ser pego pelos calcanhares, caríssimos, não é privilégio de Achilles.
O esplêndido herói da mitologia grega, soldado imbatível,  foi banhado por sua mãe, Tétis, nas águas do Rio Estige, ao nascer. Um sagrado banho de invulnerabilidade. O coração materno, antevendo seu futuro de batalhas mis, correu a providenciar-lhe uma blindagem, uma capa eterna, sonho esse comum a todas as mamãs, deusas, semi deusas, mortais e ordinárias mesmo. A poderosa segurou seu baby pelos calcanhares, mergulhou-o, e pronto!!!! Feito. Nada, nem o mais furioso dos raios do Olimpo o atingiria. Narra a lenda que o moço tinha o corpo fechado, à exceção dos.... calcanhares,  ocultados pelas mãos da genitora, que ela não largou o rebento, não, que água de rio grego tem correnteza. Segurou-o firminho pelos calcanhares.

Calcanhar de Achilles. Ponto onde a criatura morre fácil, portanto.

Não sou heroína, e não foi profetizado ao meu nascer que eu enfrentaria criaturas mitológicas ou ferozes guerreiros.  Cresci sem escudos, e enfrentei quase os mesmos monstros. Meu corpo, nem por um segundo, esteve invulnerável a nada - mais do que sinto e sofro e vibro, impossível. Uma brisa me desperta. Afora estas irrelevâncias, eu e o prezado Achilles temos muito em comum: o calcanhar. Coisa boba, parece de vidro. Quebra que é uma beleza.

Sábios os gregos, sábia a Mãe Natureza. Foi à toa não. A criatura tem que ter um ponto frágil, para se humanizar. Sempre me tive na mais alta conta. (E Achilles, então, gente?) Sinto-me capaz de qualquer batalha. Não há quem me amedronte. Que venham os machistas, os racistas, os escravagistas, os corruptos, os traficantes, os traidores, os egoístas, os psicopatas, os canalhas todos. Ai, pobre de mim. Fui-me. Estou que nem ando.

É uma dor, caríssimos, humilhante. Virei criança pequena, chorosa. Se eu piso, dói. Se não piso, dói também. As distâncias mínimas até ao banheiro, até a cozinha, até ao abatjour, até ao armário, são vencidas em silêncio e resignação. E a hora da injeção? No bumbum, queridos. O farmacêutico conhece minha derriére, e não dá-lhe a menor pitomba. Isto é um horror. Bumbum não é coisa que passe em branco, que se revele assim, sem um charme, uma música, uma intenção. " - A senhora abaixe o short. Pronto, acabou. São vinte reais". O tal apelo erótico zerou. Virou um pedaço de carne sem significado nenhum. Um espaço carnal sem função cênica.

Já tive filhos, desamores, desempregos, assaltos, decepções, decorrências. Agora tenho um calcanhar de achilles. Diagnosticado como Esporão de Calcanha ( assim mesmo, sem o "r" final), este ínfimo osso que resolveu crescer depois que eu cresci, em lugar que não é para ter osso nenhum,  incomoda mais que dor de cotovelo - fosse isso, a gente resolveria fácil, colocando um chifre em cabeça de cavalo,  ou arranjando uma sarna para se coçar. Esporão não. É coisa de galo de briga, que só sossega com uma boa rinha.

Ai, Valha-me Zeus, Deus do Olimpo, pai adúltero de Achilles. Estou indo pelos calcanhares. Roubam minha liberdade de ir e vir, limitam meus passeios, minhas danças, meus exercícios. Limitam meus sapatitos, não mais sandálias rasteiras de gladiadora, ou altíssimas plataformas marítimas; é tudo medido, calculado, palmilhado. Conto os passos que dou. Economizo meus deslocamentos.
Não corro mais pelos trilhos da aventura sem medo. Não, estou presa pelos pés. Não escalo mais as montanhas do perigo, que amo, que me fascinam. Estou atada aos horários da fisioterapia. Dar um bom chute na porta fechada? Nem pensar. Tenho que marcar hora e aguardar pacientemente.

Mas se eles acham que venceram, enganam-se.Tenho meus truques, que me valem nestas horas difíceis. Estou presa pelos pés, mas solta pelas idéias.

Nunca li tanto, nunca vi tanto filme, e há muito tempo não escrevo tanto. Poder-se-ia dizer que estou passando minha vida a limpo. Minha cabeça roda em velocidade resistente de maratonista. Perservero nesta viagem emocional. Nada me abala. Estou protegida, muito bem abrigada no trem intercontinental das letras, dos cenários, dos personagens, dos idiomas sonoros dos filmes sem dublagem. Expresso do Oriente.

Perdi os calcanhares. Ganhei asas.

Em meu pensamento, corro livre, leve e solta por campos lindos, verdes, sem fim. No segundo seguinte, parto em expedições humanitárias. Estou na África com o Médicos Sem Fronteiras; voei para Síria, e acalanto os órfãos. Faço curativos nos feridos da Ucrânia. Estou lá, no Alemão, entrincheirada, defendendo as crianças do tráfico.

Poder maior e mais inebriante do que o das idéias? Duvido.
As idéias são o fermento do mundo.
Sem idéias não há revolução.

Obrigada,  obrigada, repito agradecida,  em prece a Achilles, e aos demais deuses do Santo Esporão.




                                                                   A obra de arte de Veyrier - Achilles morrendo.
                                                                   1683

Um comentário:

  1. UM TEXTO PONTUAL.. ESPERO MELHORES NOTI'CIAS SUAS ENQUAN-
    TO DELEITO-ME CURTINDO ESTE TEXTO, Q MESMO Q NÃO FOSSE SEU PAI Q TANTO TE AMA, CURTIRIA DE MONTÃO...V CONSEGUIU FAZER GRAÇA - CULTURA TB E' HUMOR - COM A SERIEDADE DESSA CHATURA DESTE HERO'I GREGO,E POR ANALOGIA , SENTIU-SE NO LUGAR DELE....MAS, DUVIDO E MUITO Q AQUELE ACHILES, TIVESSE A IMAGINAÇÃO E , PORTANTO, A CRIATIVIDADE DE TRANSFORMAR ESSA DOR INSUPORTA'VEL, NUM TEXTO EXCELENTE. BJKASSSSSS

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