quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Os anjos

Tijuca

Rio de Janeiro



Começou o ano letivo e tenho dois filhos em idade escolar. Pablo, de treze anos, é meu leão, altivo, leal, e feroz, um nobre selvagem, e continuará sua redenção no Colégio Princesa Isabel Redentora. Feliz em seu habitat, e por reencontrar e redescobrir seus amigos.

Pedro, de seis anos, tem bochechas gordas, olhos de anjo e coração valente. Criatura sapeca que estudava no jardim de infância até ano passado. O ano de 2011 será o ano de sua alfabetização, e o jardim findou-se. Hora da horta, da plantação de letras. Sei que fará travessura com as letras e as colherá viçosas. Até as letras se alegram com sua chegada.

Fui convocada para a primeira reunião do colégio novo. Lá fui eu. Marcou reuniáo, vou. Se é de colégio, de trabalho, de famosos, de desconhecidos, de samba, de golpe de Estado, de roubo de carros, de ensaio de jazz, não interessa. Vou a reuniáo. Quero reunir-me.

O colégio é uma fundação grandiosa. Sào 110 mil crianças atendidas em todo território nacional. Resultados fantásticos para a educação do Brasil. O Banco que custeia e mantém a obra oferece tudo aos alunos - uniforme, material, merenda, assistência odontológica, que bom! Passamos a vida a pagar juros e taxas bancárias, e os banqueiros sáo os donos do (nosso) dinheiro, portanto, na verdade, essa ofertas já estão pagas.

Entro em um auditório imenso e assusto-me; preciso parar com isso de assustar-me. Sentadas na primeira fila a diretora, coordenadoras, professoras, e assistentes usam o mesmo tom de tinta no cabelo, e o mesmo formato de óculos. A mesma faixa etária. O mesmo corpo, nem gordo, nem magro, o tipo de corpo que não faz exercícios, nem toma sol, nem dança. Os mesmos gestos, o mesmo jaleco branco, o mesmo relógio de pulseira de couro escuro. Não sáo feias, nem bonitas, não tem características definitivas. Anunciam o andamento da reuniáo, e com o mesmo tom alto e pausado de voz explicam como devemos fazer para que 2011 seja um ano produtivo e de sucesso para todos.

Desejo essa receita como quem deseja ganhar na Mega Sena.
Quem tem essa receita, meu Deus? Elas tem.
Basta seguir o que dizem e tudo ficará sob controle. 105 crianças da alfabetização precisam ser controladas. Precisam ser equiparadas umas às outras, para que as determinações das regras anulem as diferenças sociais. Anulem também as preferências. O mesmo tênis para todas, ok. A camisa para dentro do short. ok. Para fora da calça? Não. Cabelos presos com um laço branco, ok. Nào pode rosa nem vermelho? Nào. Branco. Letra de forma maiúscula para as etiquetas, a serem coladas no lado direito do caderno.Ok. Uniforme pequeno, ou grande deve ser trocado por outro unicamente amanhã. A criança então ficará apertada ou engolida o ano inteiro se a pobre mãe falhar. Controlam as mães também. Recados diários na agenda, a serem protocolados diariamente também. Sempre anotar o número da chamada ao lado do nome da criança. Nada de nome sem número. Nada de materiais com símbolos de times. Tudo formatado. Vontade de ir ao banheiro? Formatada. É só no intervalo. Orientar que para lavar a mão não pode fazer muita espuma. São 105, se 105 fizerem espuma a pia entope. Não podem levar lanche, tem que comer o da cantina. Nem um bombonzinho na mochila, caso não gostem da merenda? Nas dependências do colégio náo. Nada que náo passe pelo controle da nutricionista.

Quanto mais repetem isso, mais penso: mais gente, menos carinho, e mais controle. Será que se amarmos mais pessoas as amaremos menos? Para amarmos maior quantidade de gente, teremos que ser mais frios e controlados com todos eles. É isso? Não sei.

A mestra de educação física diz tudo deve que ser marcado com nome e número. Marcar para não perder. Tatuarei meu nome no punho de meu amor, e o número 20, dia em que nos conhecemos. Assim não o perderei. Esta última mestra tem um apito, e deve apitar a qualquer momento.

Ontem a terapeuta garantiu-me que devo tentar aproximar-me de meus flhos com a aceitação carinhosa das nossas opiniões distintas. Que devo ceder para aproximar-me. Aqui pedagogas nada cedem. Eu seria péssima pedagoga, e sob este prisma, nem sei como sou mãe.

Vejo 40 crianças em forma, mãos nos ombros do colega. Estavam serenas. Ao olhar para elas, não sei suas histórias. Não sei quem está feliz ou segurando o choro.
Não sei quem é amigo de quem. Não sei quem é o levado ou o comportado. Não sei quem gostou da merenda ou quem fez o desenho mais colorido. Foram igualados para serem controlados. Estão controlados, elas conseguiram.

A liberdade assusta os poderosos, pois confere poder aos sonhadores.

E que a disciplina imposta assim não depene as asas de meu filho. Ele voa, e quem voa, náo sabe não voar. Que este anjo, que anda descalço e descabelado pela minha casa, continue livre em seus pensamentos e doce em seus gestos. Peço por ele, e peço egoistamente por mim. Sua alegria me sustenta todos os dias.

Observo uma árvore próxima, logo ali ao lado dos guardas armados que tomam conta do colégio. Fiquem tranquilos senhores, sou da reunião do primeiro ano e náo sei onde é a saída.
A árvore reina, imensa, rachou a terra há séculos. Suas raízes estáo expostas, se olharmos bem, são veias, saltam por fora do tronco, desgranhadas, grosseiras, fartas. Deveriam estar embaixo da terra, não estão.

As mestras precisam saber disso. Algumas coisas estão fora da regra, e estão maravilhosas assim.

2 comentários:

  1. Linda declaração de amor! As asas não devem ser cortadas e nem as pessoas "uniformizadas", pq ai se perde a grande beleza do ser humano, a sua identidade.

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  2. Ai amiga, fiquei com peninha do Pedro! Fiquei com pena dos meus filhos também, e de nós todos que passamos pelos colégios da vida. Sabemos que é difícil a vida dos professores, azucrinados pela falta de educação das crianças e massacrados pelos pais que acham que não tem obrigação de educar seus filhos, a tarefa cabe apenas ao colégio. Mas por outro lado, ver as crianças pequenas entrando num super colégio, enorme, com milhares de outras ciranças todas devidamente "controladas" dá muuuuita peninha.
    Mas, a gente sabe, que eles sobreviverão, assim como nós sobrevivemos quando foi a nossa vez.
    Amei o texto, muito bom, como tudo o que vc faz.
    Grande beijo

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